Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2004

Povo que lavas no rio

Povo que lavas no rio

Que vais às feiras e à tenda

Que talhas com teu machado

As tábuas do meu caixão,

Há-de haver quem te defenda,

Quem turve o teu ar sadio,

Quem compre o teu chão sagrado,

Mas a tua vida não!

 

Meu cravo branco na orelha!

Minha camélia vermelha!

Meu verde manjericão!

Ó natureza vadia!

Vejo uma fotografia...

Mas a tua vida, não!

 

Fui ter à mesa redonda,

Beber em malga que esconda

Um beijo, de mão em mão...

Água pura, fruto agreste,

Fora o vinho que me deste,

Mas a tua vida não!

 

Procissões de praia e monte,

Areais, píncaros, passos

Atrás dos quais os meus vão!

Que é dos cântaros da fonte?

Guardo o jeito desses braços...

Mas a tua vida, não!

 

Aromas de urze e de lama!

Dormi com eles na cama...

Tive a mesma condição.

Bruxas e lobas, estrelas!

Tive o dom de conhecê-las...

Mas a tua vida, não!

 

Subi às frias montanhas,

Pelas veredas estranhas

Onde os meus olhos estão.

Rasguei certo corpo ao meio...

Vi certa curva em teu seio...

Mas a tua vida, não!

 

Só tu! Só tu és verdade!

Quando o remorso me invade

E me leva à confissão...

Povo! Povo! eu te pertenço.

Deste-me alturas de incenso.

Mas a tua vida, não!

 

Povo que lavas no rio,

Que vais às feiras e à tenda,

Que talhas com teu machado,

As tábuas do meu caixão,

Pode haver quem te defenda,

Quem turve o teu ar sadio,

Quem compre o teu chão sagrada,

Mas a tua vida, não!

Pedro Homem de Melo

Publicado por Eira-Velha às 23:13
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O Bailador de Fandango

Sua canção fora a Gota.

Sua dança fora o Vira.

Chamavam-lhe "o fandangueiro".

Mas seu nome verdadeiro

Quando bailava, bailava...

Não era nome de cravo

Nem era nome de rosa;

Era o de flor, misteriosa,

Que se esfolhava, esfolhava...

E havia um cristal na vista

E havia um cristal no ar

Quando aquele fandanguista

Se demorava a bailar!

E havia um cristal no vento

E havia um cristal no mar.

E havia no pensamento

Uma flor por esfolhar...

Fandangueiro! Fandangueiro?

(Nem sei que nome lhe dar...)

 

Tinha seus braços erguidos

Não sei que ignotos sentidos...

- Jeitos de asa pelo ar...

Quando bailava, bailava,

Não era folha de cravo

Nem era folha de rosa.

Era uma flor, misteriosa,

Que se esfolhava, esfolhava...

Que se esfolhava, esfolhava...

 

Domingos Enes Pereira,

Do lugar de Montedor,

(O bailador de Fandango

Era aquele bailador!)

Vinham moças de Areosa

Para com ele bailar...

E vinham moças de Afife

Para com ele bailar.

Então as sombras dos corpos,

Como chamas traiçoeiras,

Entrelaçavam-se e a dança

Cobria o chão de fogueiras...

 

E as sombras formavam sebe...

O movimento as florira...

O sonho, a noite, o desejo...

Ai! belezas da mentira!

 

E as sombras entrelaçavam-se...

Os corpos, ninguém sabia

Se eram corpos, se eram sombras,

Se era o amor que se escondia...

Pedro Homem de Melo

Publicado por Eira-Velha às 22:51
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D. Caio

Era uma data memorável, aquela em que se encerrava um ciclo de aprendizagem mínima e se iniciava um outro, que mais não era do que continuar o primeiro, mas noutra dimensão, a dimensão do trabalho árduo e escalvado do campo.

Pela noite dentro, o sono não pegava, o nervosismo fazia contracções no abdómen e gerava um constante rebolar no fofo xaragão cheio de palha de centeio.

Ainda o dia era uma miragem e já o reboliço animava a casa. A lareira crepitava, convidando para um parco pequeno almoço, se assim se podia chamar a fumegante água de unto que lubrificava e aconchegava o estômago, redobravam-se os cuidados de higiene, esfregando bem aquelas zonas mais recônditas dos pavilhões auriculares, vestia-se a melhor fatiota e toca a andar que a caminhada era longa.

 

Pelo caminho ia relembrando a matéria, cada parágrafo do texto já predefinido – escolhe o D. Caio que é fácil, vais ver que é fácil – e o D. Caio, o famoso "mata-sete", tinha sido lido e relido até à exaustão. Conhecia a história de fio a pavio, os pontos, as vírgulas, os parágrafos, as orações, os verbos... o cavalo à desfilada "eu caio, eu caio" e o pobre alfaiate, tão aflito como eu, agarrado às crinas do fogoso solípede. Mas havia mais coisas para rebuscar nos arquivos da memória: a Geografia, com os sistemas montanhosos e as serras, do Minho ao Algarve, Peneda, Soajo, Gerês, Cabreira...; os rios e afluentes, o rio Minho nasce nos montes Cantábricos em Espanha, passa por Melgaço, Monção e Valença e vai desaguar junto de Caminha, tem como afluente, da margem esquerda, o Coura...; a História, com o nome e cognome dos reis, as grandes batalhas e tratados de paz, os descobrimentos, a época negra dos "Filipes", a restauração, as invasões francesas, a conturbada época do constitucionalismo, o regicídio e, finalmente, a implantação da república, da qual despontou aquele "grande senhor" que havia de "salvar" a Pátria do caos económico e social em que se encontrava e lançá-la num longo período de obscurantismo triste e bacoco...; a Matemática, uma mão cheia de números e fórmulas e... reguadas.

 

Após percorrer escassos quatro quilómetros, por um pedregoso, escuro e sinuoso caminho, surgia a primeira grande novidade, o carro de praça, que em menos de uma hora nos levaria à Vila, aquela urbe gigante e desconhecida que nos iria fazer abrir a boca de espanto com as suas amplas e longas ruas pejadas de gente, o casario enorme, com portas e janelas envidraçadas e o comboio, aquele gigante de aço que resfolegava e fumegava como um enorme dragão.

Num ápice, estávamos sentados nas carteiras que já nos eram familiares, umas folhas de papel almaço à frente, com a margem esquerda de três centímetros rigorosamente marcada e vincada a régua e esquadro, a caneta de tinta permanente devidamente preparada de véspera, não fosse o diabo tecêlas e nos borrasse a folha de prova, e um nó no estômago que nunca mais se desatava. Mas as esperadas dificuldades foram sendo superadas, afinal, nem era assim tão difícil. Só faltava agora superar a prova oral, mas essa, era certo que ia ser "canja". Era só o professor deixar escolher a lição que o resto já eu sabia...

E assim foi. Sentado em frente do severo júri de exames, um trio de professores de alto quilate que ali se encontrava a postos para nos fazer vomitar tudo quanto sabíamos, surgiu a fórmula mágica que eu ansiosamente esperava – escolhe lá a lição –e eu, sem hesitar um segundo, abri o livro na página do D. Caio e li, como se estivesse no recreio com os colegas de brincadeira, até que me foi ordenado que parasse: "Era uma vez um alfaiate que estava à porta da rua... e de uma vez matou sete moscas...".

Então começa o massacre, com perguntas e mais perguntas, às quais eu respondia na ponta da língua e, já quase no final, a pergunta fatal: "Coloca a frase ... no futuro". A resposta saiu célere da minha boca "estarei" mas a reacção do membro do júri colocado ao centro e que parecia ser o mais importante fez tocar a rebate todos os sinos do meu cérebro. Aflito, tentava em vão, conjugar o verbo em todos os tempos, lia e relia a frase "estarei, estarei" e não havia forma de se fazer luz na escuridão em que a minha cabeça se encontrava.

Olhei fixamente o professor que, severo e impiedoso, aguardava a minha resposta definitiva, obrigando-me a desviar o olhar envergonhado. Inquieto, aflito, escarlate e a transpirar por todos os poros, já só imaginava o que seria quando toda a gente soubesse que tinha levado a "raposa", até que ousei, mais uma vez, enfrentar as medonhas "fuças" do júri. E, na expressão calma e semi-divertida de um dos professores que ladeavam o meu algoz, vislumbrei o suave movimento labial que me havia de salvar: "estará!", exclamei eu como se de repente todo o peso do mundo saísse de cima de mim.

Coimbra, 13 de Outubro 2001

Publicado por Eira-Velha às 22:34
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Quarta-feira, 25 de Fevereiro de 2004

Forças de Segurança - Limites ao uso de armas de fogo

Já dizia a minha avó: "Quem brinca com o fogo faz chichi na cama". Para quem não acredita ou desvaloriza a sabedoria popular, mais uma vez ficou provado que o senso comum encerra muita sabedoria e continua a ser uma forma de conhecimento plenamente válida.

No preâmbulo do Decreto Lei n.º 457/99, de 05 de Novembro, pode ler-se que "o circunstancialismo em que as forças de segurança podem, ou mesmo devem, usar a força tem vindo a constituir uma preocupação sentida nacional e internacionalmente".

Invocando ainda preceitos constitucionais sobre o modo de actuação dos agentes administrativos, que se deve reger pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da necessidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé, refere-se ainda no mesmo documento, a propósito do uso da força pelos agentes policiais, que a mesma só deve ser empregue "quando tal se afigure estritamente necessária e na medida exigida para o cumprimento do seu dever".

Os princípios enumerados, que norteiam e balizam qualquer intervenção pela força, revestem-se ainda de maior razão de ser quando estiver em causa o uso de instrumentos como sejam as armas de fogo.

Após exaustiva fundamentação sobre a necessidade de legislar sobre o uso de armas de fogo pelas forças policiais, o referido diploma legal define, claramente, as circunstâncias em que é legítimo o recurso às mesmas, sempre como medida extrema e excepcional, atentos os princípios da necessidade e da proporcionalidade e desde que esgotados outros recursos ou meios menos perigosos.

Depois de serem enumeradas as situações concretas em que é permitido o recurso a armas de fogo, o art. 3.º do citado Decreto Lei, no seu n.º 2, limita ainda mais o uso das mesmas contra pessoas, prevendo a possibilidade da sua utilização desde que, taxativamente, se verifique uma das seguintes situações:

  • Para repelir uma agressão ilícita dirigida contra o agente ou terceiros, se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física;
  • Para prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas;
  • Para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e que resista à autoridade ou impedir a sua fuga.

Também, de acordo com o n.º 3 do mesmo diploma, ninguém pode ser objecto de intimidação através de tiro de arma de fogo sempre que, atentas as circunstâncias, não seja permitido o recurso às armas desta natureza

Serve todo este arrazoado para aqui tecer alguns comentários à notícia que hoje deu à estampa em alguns órgãos de comunicação social.

Não tenho dúvida alguma de que se tratou de um acidente. Porém, face ao conhecimento obtido através do artigo para que nos remete a hiperligação anterior, não me parece ter havido absoluta necessidade de usar a arma de que aquele Oficial era detentor, face às circunstâncias verificadas (injurias?).

Como também não me parece haver uma necessidade imperiosa de mover uma perseguição policial a um motociclista que circula sem chapa de matrícula e se põe em fuga ao aperceber-se da presença dos agentes policiais.

Já a observação do representante da APG faz algum sentido. Não tanto pelas características do armamento utilizado (a Brigada de Trânsito até nem está muito mal servida) mas pela qualidade e intensidade do treino.

O manejo e uso de armas de fogo tem de ser preparado e treinado como se faz para jogar ténis, golfe ou qualquer jogo de perícia.

Sem treino adequado, a legislação não resolve o problema tanto mais que, perante o infortúnio, de nada serve arranjar equipamento mais sofisticado nem invocar a legitimidade ou ilegalidade de determinada acção.

Não sei que formação ou preparação teve aquele desditoso oficial para o exercício das funções que lhe competem. Contudo, trata-se de um graduado com responsabilidades acrescidas, responsável não só pelo comando e supervisão do efectivo seu subordinado mas também pelo controlo interno da actividade policial, com vista a corrigir procedimentos inadequados e fazer observar os limites legais do exercício do poder de autoridade.

Comparado o resultado da acção por si desencadeada com aquilo que poderia ocorrer se nada tivesse feito no sentido de interceptar o eventual infractor não é difícil concluir que os danos são muito superiores neste caso do que aqueles que resultariam da falta de censura pela ilicitude cometida pelo motociclista.

Já que nada se pode fazer a não ser lamentar o ocorrido, que saibam as instâncias competentes, pelo menos, retirar ilações e implementar medidas no sentido de que actos desta natureza não possam de forma alguma suceder.

Porque os prejuízos causados não são, de todo, remediáveis.

Publicado por Eira-Velha às 17:31
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Terça-feira, 24 de Fevereiro de 2004

Coimbra mascarada

É assim que eu gosto de Coimbra. Uma urbe semi-deserta, com muitos espaços "em branco", grande fluidez de tráfego, sem carros em cima dos passeios e sem os peões na faixa de rodagem.

Alguma animação no Choupal, onde algumas pessoas por gosto, outras por obrigação (nestas me incluo porque o Zarator já se revela manifestamente insuficiente para me colocar os níveis de colesterol num plano aceitável), vão tentar queimar calorias ou, simplesmente, oxigenar.

Depois é ver a Avenida Fernão de Magalhães quase vazia, parar nos semáforos, perfeitamente desnecessários, em dias como este, e não ver ninguém à nossa volta, de novo alguma animação junto ao Pingo Doce (o estômago não dá tréguas. Pela Rua da Sofia, que normalmente fervilha de gente e de gases dos escapes apenas deambulam alguns velhotes, a contas com o reumático e pouquíssimos casais "serranos" que exibem para uma plateia inexistente as suas desinfelizes criancinhas com trajes que se pretende sejam carnavalescos.

O Mercado D. Pedro V está lindo, sim senhor, foi a melhor obra deixada à cidade pelo executivo de Manuel Machado (bem haja) mas está fechado, que em dias de folia não se trabalha.

Sá da Bandeira acima, Praça da República, Escadas Monumentais, a mesma paisagem, apenas salpicada aqui e além por pequenos grupos de turistas orientais, de olhos em bico e objectiva em riste, fardados como se estivessem na Sibéria.

Da Cumeada já nem digo nada. A população residente é velha e, ou vai para a Figueira, ou fica no remanso do lar a desfrutar o sossego que noutros dias não tem.

Capas Negras nem vê-las. É tempo de exames ou de ir à terra. Para os que ficaram é tempo de descansar porque as noites são longas.

Bom, é tempo de ir ao banho e preparar-me psicologicamente para o lauto almoço que está quase pronto. Apetite não falta, só tenho é que me conter para não estragar os benefícios da hora e meia de corrida.

Bom Carnaval!

Publicado por Eira-Velha às 12:18
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Segunda-feira, 23 de Fevereiro de 2004

A Belina

Chamavam-lhe a Belina, seria Avelina ou Umbelina, e era uma velha feia e má, sempre vestida de negro, com o rosto indecifrável encoberto sob o negro lenço, mas cheia de carisma.

Dela se dizia que, em tempo de grave crise económica e do racionamento dos bens essenciais, cultivava e curava tabaco na sua horta para autoconsumo, desafiando as autoridades fiscais que vasculhavam tudo à procura de excedentes agrícolas e também para combater a fraude e a evasão fiscal.

Contava-se também que, mais nova, comercializava peixe, geralmente salgado, que era a única forma de fazer chegar o produto às aldeias do interior em condições de ser consumido. Escarranchada em cima de um pequeno e robusto jerico, fazia o percurso até à sede da freguesia onde se ia abastecer ao "mula", designação por que era conhecido o camião de transporte de peixe, e regressava ao lugar onde assinalava a chegada com um vigoroso toque de búzio, que ressoava por montes e vales até se extinguir no infinito.

Quando eu a conheci, velha e alquebrada, vigiava os porcos que foçavam pelas bordas dos caminhos e iam espojar-se na lama dos charcos, junto às nascentes de Salgueirão ou, então, sentada nas graníticas escaleiras da sua residência, apanhava sol e deitava comida às galinhas.

Por vezes, nós, os garotos, imitando o seu trémulo vozeirão, espicaçávamos o seu mau génio, cuja reacção demonstrava bem a têmpera da velha que, em vão, corria ameaçadora atrás de nós, de pau em riste.

Por fim acamou e era certo que se aproximava o dia de prestar contas ao Criador. Havia já alguns dias que não se esperava outra coisa que não fosse o desenlace fatal, com a calma e a resignação de quem tem a certeza que, mais tarde os mais cedo, a todos chega a vez.

Naquele dia, pouco depois do meio-dia, o meu irmão Zé chegou a casa, depois de ter levado o gado para o pasto nas encostas da Calçadinha, e contou, admirado, que ao passar junto da casa da Belina, viu a velha sentada nas escadas a alimentar as galinhas que se amontoavam à sua volta a debicar os grãos de milho que lhe caíam das esqueléticas mãos.

Minha mãe, bem sabendo que tudo não passara de uma visão do outro mundo, disse baixinho e imperativamente: "Cala-te que ela está a morrer!"...

Nessa mesma tarde, a ténue chama de vida que ainda alimentava o frágil canastro da Belina extinguiu-se para sempre.

Coimbra, 6 de Novembro de 2001

Publicado por Eira-Velha às 22:17
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Amigos (outra versão)

Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos.

Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta

necessidade que tenho deles.

A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor,

eis que permite que o objecto dela se divida em outros afectos, enquanto o

amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade.

E eu poderia suportar, embora não sem dor, que

tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem

todos os meus amigos!

Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus

amigos e o quanto minha vida depende de suas existências …

A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem.

Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida.

Mas, porque não os procuro com assiduidade, não

posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.

Muitos deles estão lendo esta crónica e não sabem

que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos.

Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro,

embora não declare e não os procure.

E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem

noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu

equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente,

construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.

Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado.

Se todos eles morrerem, eu desabo!

Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles.

E me envergonho, porque essa minha prece é, em

síntese, dirigida ao meu bem estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.

Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles.

Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos,

cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando

daquele prazer ...

Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a

roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando

comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus

amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber

que são meus amigos!

A gente não faz amigos, reconhece-os.

Vinicius de Morais

Publicado por Eira-Velha às 22:02
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Se te queres matar...

Se te queres matar, porque não te queres matar?

Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,

Se ousasse matar-me, também me mataria...

Ah, se ousares, ousa!

De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas

A que chamamos mundo?

A cinematografia das horas representadas

Por actores de convenções e poses determinadas,

O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?

De que te serve o teu mundo interior que desconheces?

Talvez, matando-te, o conheças finalmente...

Talvez, acabando, comeces...

E, de qualquer forma, se te cansa seres,

Ah, cansa-te nobremente,

E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,

Não saúdes como eu a morte em literatura!

 

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!

Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

Sem ti correrá tudo sem ti.

Talvez seja pior para outros existires que matares-te...

Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

 

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado

De que te chorem?

Descansa: pouco te chorarão...

O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,

Quando não são de coisas nossas,

Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,

Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

 

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda

Do mistério e da falta da tua vida falada...

Depois o horror do caixão visível e material,

E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.

Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,

Lamentado entre as últimas notícias dos jornais da noite,

Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...

E tu mera causa ocasional daquela carpidação,

Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...

Muito mais morto aqui que calculas,

Mesmo que estejas muito mais vivo além...

 

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,

E depois o princípio da morte da tua memória.

Há primeiro em todos um alívio

Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...

Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,

E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

 

Depois lentamente esqueceste.

Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:

Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.

Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.

Duas vezes no ano pensam em ti.

Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,

E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

 

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...

Se queres matar-te, mata-te...

Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...

Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera

As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

 

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,

Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

 

És importante para ti, porque é a ti que te sentes,

És tudo para ti, porque para ti és o universo,

E o próprio universo e os outros

Satélites da tua subjectividade objectiva.

És importante para ti porque só tu és importante para ti.


E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

 

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?

Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,

Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

 

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?

Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:

Torna-te parte carnal da terra e das coisas!

Dispersa-te, sistema físico-químico

De células nocturnamente conscientes

Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,

Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,

Pela relva e a erva da proliferação dos seres,

Pela névoa atómica das coisas,

Pelas paredes turbilhonantes

Do vácuo dinâmico do mundo...

 

Álvaro de Campos

Publicado por Eira-Velha às 21:42
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Domingo, 22 de Fevereiro de 2004

A Pejeira

lobos na serra. É verdade, quem quiser vê-los vá a Lamas do Mouro que lá pode ver um filme onde é exibida uma alcateia desses lendários predadores a deambular pelas serranias do Alto Minho.


Os lobos de que se fala são animais esquivos que não querem nada com os outros designados por humanos, estes bem piores do que os primeiros.


As memórias da minha infância estão povoadas de histórias, umas verdadeiras, outras meras fantasias, fruto da imaginação e das mentalidades da época.


Nas longas noites de Inverno, à volta da lareira e sob a luz pálida da candeia a petróleo, falava-se de actos heróicos protagonizados por homens e feras, de lobisomens e de pejeiras.


Certamente já todos ouviram falar de lobisomens, quanto mais não seja, através dos inúmeros filmes que abordaram o tema. Mas de "pejeiras" ainda não ouviram nada pois não?


Pois aquilo que contavam os mais velhos não eram meras fantasias mas histórias verdadeiras. Todos os filhos varões que numa sequência ininterrupta nascessem em sétimo lugar estavam condenados a ser lobisomens e, nessa qualidade, vaguear de noite pelos montes. Eram criaturas solitárias e esquivas que não se deixavam ver.


Do mesmo modo sucedia com as mulheres. Estas eram as "pejeiras", criaturas mais misteriosas que os lobisomens, misto de mulher e de fera, detentoras de um enorme fascínio e poder sobre as alcateias de lobos que se lhes submetiam e também o tema preferido das histórias de encantar que eu então ouvia.


A pejeira juntava-se a uma alcateia que a aceitava e defendia. Desprendia-se totalmente da família natural, com a qual não voltava a contactar, mas a quem muitas vezes protegia, impedindo o ataque dos rebanhos pela sua alcateia ou por outra que se aproximasse dos seus domínios.


Houve mesmo quem tivesse presenciado estupefacto, durante a noite, em torno de uma fogueira, a pejeira a dividir pelas feras os despojos das caçadas que estas faziam durante o dia.


Coimbra, 22 de Fevereiro de 2004


 


 

Publicado por Eira-Velha às 11:49
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Sábado, 21 de Fevereiro de 2004

Cotacroa, Capa e Broa

Era impressionante o mundo que se avistava do cimo daquele cabeço, situado nas faldas da Serra da Peneda.

O morro do Pedrinho, com as suas neves "eternas", a serra da Anta, por cima de Merufe, a Cumieira, a serra de Cubalhão, a Galiza a perder de vista... e o Vale do Rio Mouro: Riba de Mouro, Tangil, Podame, Segude, Ceivães, depois o Rio Minho, com os seus reflexos da cor da prata, fronteira intransponível, que tanto nos protegia das investidas dos ancestrais inimigos espanhóis como nos impedia de ir mais além do que os limites da secular Vila de Monção.

Sentado junto do marco geodésico, em cima do penedo mais alto do velho cabeço, era um mundo de sonho e de ilusão o que se espalhava ante os meus olhos, de uma beleza só vista em postais ilustrados, e de uma grandiosidade asfixiante, mas o que mais pesava era o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar de algum bicho no mato, pelo grito de uma ave assustada, pelo mugir de algum animal que se afastou da manada...

Das profundezas do vale chegava, por vezes, o som muito ténue de algum chamamento esganiçado, de alguma mãe aflita que assim chamava o filho à razão, de alguma esposa cuidadosa que, depois de passar parte do dia ombreando com o homem no amanho da terra, fora apressada fazer o jantar e assim lhe comunicava que o caldo estava pronto.

Mas o silêncio era Rei.

O silêncio e uma ténue neblina que pairava sobre o Pedrinho e começava a crescer e a espalhar-se por toda a serra de forma preocupante.

            Em poucos minutos, o céu, até então de um azul imaculado, ficou da cor do chumbo, o vale, até então cheio de vida e de brilho, escureceu, o peso do silêncio foi substituído pelo vento fustigante que parecia varrer tudo à sua frente. E de repente, um cintilante raio rasga o tecto de nuvens cor de breu e o estrepitar de um trovão faz estremecer o mundo. O mundo de encantamento que me tinha transportado para o sonho era agora um mundo de trevas e de medo. Parecia que as enormes massas graníticas atraíam todos os raios do mundo para ali. O vento, agora acompanhado de fortes bátegas de chuva, zurzia nos corpos frágeis, sem qualquer protecção que não fossem os míseros farrapos que mal cobriam os ossos.

         De regresso a casa, debaixo da tormenta, foi reconfortante o calor da lareira e a tigela de caldo quentinho, enquanto contava, ainda assustado, aquela aventura e a metamorfose que se operara de repente.

         Calmamente, o meu pai, certamente protagonista de episódios semelhantes, sentenciou: "Meu filho, para o Cotacroa há que levar capa e broa".

 

Coimbra, 12 de Outubro de 2001

Publicado por Eira-Velha às 00:19
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