— Vamos, está na hora!
Havia algum tempo que ela lá estava. Não entrou pela porta nem pela janela, simplesmente surgiu ali, aos pés da cama, e não cessava de me observar.
Tentei ignorá-la mas aquela sensação dolorosa, aquela constrição no peito, aquele ardor e ansiedade causavam-me um intenso desassossego e era inevitável deixar de olhar para o seu enigmático sorriso.
Senti ainda um último bater do coração, um último estertor dos pulmões, um último estrebuchar do corpo e finalmente o silêncio, um silêncio absoluto, glacial e arrepiante.
Desenvencilhei-me da carga de ossos e músculos que me davam forma e elevei-me facilmente no exíguo espaço do meu quarto. Pairei no ar e virei-me para o lugar de onde saíra. O meu corpo permanecia tal qual o tinha deixado e observei-me algo surpreendido. Estava muito mais velho do que supunha, mais gordo do que pensava, mais feio do que imaginava e não pude deixar de me divertir com a gaifona estampada no meu rosto, misto de dor, de susto e de lenitivo.
Nada fazia prever aquele desfecho. Tinha feito análises clínicas recentemente e estava quase tudo bem, excepção feita ao colesterol que acusava índices um pouco elevados, coisa que o zarator e algum rigor na alimentação não remediassem. Foi tudo culpa daquele microscópico grão de gordura que se desprendeu da veia junto ao tornozelo e iniciou uma caminhada de dias em direcção ao coração. Primeiro andou à deriva na barriga da perna, ainda se acoitou umas horas numa variz na coxa mas voltou a retomar a corrente que engrossava à medida que se aproximava do vigoroso músculo cardíaco. Entrou na aurícula esquerda pela veia cava inferior, passou pela válvula tricúspide para o ventrículo esquerdo e foi impelido com força para a artéria pulmonar, ultrapassou a custo os alvéolos e regressou ao coração pelas veias pulmonares. Impelido para a aurícula direita, um impulso vigoroso do músculo cardíaco obrigou-o a sair pela artéria aorta mas logo no início do enorme vaso sanguíneo inflectiu a marcha e entrou por um finíssimo tubo no pericárdio que se ramificava para outros ainda mais finos e a determinada altura imobilizou-se por causa do diminuto diâmetro do ramal coronário por onde tinha entrado. Foi nessa altura que senti aquelas sensações estranhas.
—Vamos! Não há tempo a perder — insistiu ela.
Voltei-me calmamente e ia dizer-lhe que precisava resolver algumas coisas importantes mas já ela se encontrava de costas para mim e se dirigia para uma porta na parede, até ali inexistente.
Segui automaticamente atrás dela sem esboçar a mínima resistência. O caminho era escuro mas os meus passos eram seguros, como se já por ali tivesse andado muitas vezes. Não se ouvia qualquer ruído, não soprava uma ínfima brisa de ar, apenas as nossas sombras se deslocavam agilmente ao longo daquela interminável galeria.
Subitamente o caminho desapareceu à beira de um precipício medonho, embora a minha companheira continuasse a caminhar sem se importar com o que os meus olhos tinham acabado de descobrir. A visão das profundezas era simplesmente terrífica: no leito do vale corria um rio de borbulhante e incandescente lava por onde nadavam as mais diversas e horrendas criaturas que se possa imaginar. Hesitei, quis voltar para trás mas um muro intransponível cortava-me a passagem.
—Continua, não pares — exortou-me ela.
Levantei o pé, lancei a perna para a frente e fechei os olhos, certo de que me iria precipitar no abismo mas enganei-me. O meu pé assentou no chão firme, dei outro passo, e outro, e outro. Abri os olhos e fiquei estupefacto com o que estava a acontecer. Conforme caminhava, uma estreita ponte ia ganhando forma sob os meus pés, segura, sem a mínima oscilação ou vibração. À minha frente, como que suspensa da atmosfera, lá ia ela a guiar-me em direcção a um objectivo agora bem definido, uma luz no fim do imenso túnel que se seguia ao abismo e que espalhava os seus reflexos prateados pelas paredes da galeria.
A atracção era agora fascinante, a ânsia de chegar irresistível.
Chegamos finalmente.
A paisagem que se estendia ante os meus etéreos olhos não se pode descrever. De repente tudo se transformou e tornou familiar. Ali estavam eles, os meus antepassados, os amigos de infância, o cão e o gato, as galinhas e os carneiros, tudo que preenchia o meu baú das recordações.
Voltei-me.
À entrada do túnel lá estava ela imóvel, o negro manto agitado pela brisa, o esquelético rosto que apenas se podia adivinhar na escuridão do negro turbante e a enorme e reluzente gadanha pronta a ceifar outras vidas, a malograr outros projectos, a reduzir a cinza outras ambições.
O sussurrar das ondas,
A brisa do vento,
O cintilar das estrelas,
Tudo isso eu entendo.
O ribombar do trovão,
O estertor do tempo,
O fragor da tormenta,
Também isso eu entendo.
Mas esta agonia
Que oprime e aflige.
A dor que não se sente,
Neste peito ardente
Que vacila e treme
Como barco sem leme
À deriva e sem rumo.
Este fogo sem fumo
Que queima e derrete
Sem deixar ferrete
…
Isto não, não entendo.
Coimbra, 13 de Janeiro de 2006
Uma Sexta Feira 13 ou seja, uma Sexta-feira no dia 13 de qualquer mês, é considerada popularmente como um dia de azar.
Esta superstição teve origem no dia 13 de Outubro 1307, sexta-feira, quando a Ordem dos Templários foi declarada ilegal pelo rei Filipe IV de França; os seus membros foram presos simultaneamente em todo o país, e alguns torturados e, mais tarde, executados, por heresia.
Retirado de "http://pt.wikipedia.org/wiki/Sexta_Feira_13"
Para os mais distraídos aqui fica a lembrança, hoje é sexta feira, 13.
É certo que nem sempre é dia de azar mas, pelo sim, pelo não, mais vale prevenir que remediar. Eu já senti na pele (da carteira) como a crença popular não é mera superstição. Assim, aqui vão alguns conselhos:
Se vir um gato preto, cuidado! Pode estar na iminência de ter um azar qualquer;
Evite passar por baixo de escadas;
Cruze os dedos ao avistar alguém suspeito;
Bata três vezes na madeira para evitar algum infortúnio;
Entre sempre com o pé direito, em qualquer lugar para evitar o azar;
Deixe uma vassoura de cabeça para baixo atrás da porta para não ser importunado com uma visita indesejada;
Crianças que montarem em vassouras serão infelizes;
Varrer a casa à noite dá azar;
Se sentir a orelha a arder de repente, é porque alguém está a falar mal de você;
Nunca deixe o guarda-chuva aberto em casa;
Quebrar um espelho indicia que serão sete anos de má sorte.
Por isso, evite os acidentes, esteja sempre atento(a) ao que se passa em seu redor, não vá trabalhar e tire um fim de semana prolongado, seja feliz.
A Alberto Teles
Só - Ao eremita sozinho na montanha
Visita-o Deus e dá-lhe confiança:
No mar, o nauta, que o tufão balança,
Espera um sopro amigo que o Céu tenha...
Só! - Mas quem se assentou em riba estranha,
Longe de seus, lá tem inda a lembrança;
E Deus deixa-lhe ao menos a esperança
Ao que à noite soluça em erma penha...
Só! - Não o é quem na dor, quem nos cansaços,
Tem um laço que o prenda a este fadário,
Uma crença, um desejo... e inda um cuidado...
Mas cruzar, com desdém, inertes braços,
Mas passar, entre turbas, solitário,
Isto é ser só, é ser abandonado!
Antero de Quental, Sonetos
No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus próprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
arrebatado em vastos turbillhões...
Num espiral, de estranhas contorções,
E donde saem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições...
-Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turva do escarcéu,
Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões misérrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!...
Antero de Quental, in Sonetos
"E esta volúpia de escrever, uma coisa insopitável, uma angústia interior que se ramifica por todo o nosso íntimo, belisca as mãos, mordisca a inteligência, apalpa o coração, propele as nossas pernas para junto do computador e determina: escreva!
E a gente vai na onda meio que sem jeito, começa dedilhando o teclado sem nem mesmo arrumar as ideias, sem formar o enredo, que vai pingando de dentro do nosso mais escondido escaninho da alma, num turbilhão que cresta a inspiração como um fogo que irrompe de inopino, como lava de vulcão descendo as encostas da montanha atormentada e sacudida pela erupção.
Não há uma explicação plausível, é destino, é paixão, é vício, é missão.
E eu sigo escrevendo, a pena prolífica tremendo, as mãos nervosas digitando, tocando as teclas num ritmo que até eu mesmo fico perplexo admirando, mas só por instante, pois as frases já vão longe, o pensamento já ultrapassou a encruzilhada e vai em frente, soltando a imaginação, borbulhando como água fervente, levando aos leitores o retrato falado de um rabiscador".
In http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=38756&cat=Artigos&vinda=S
É lindo o texto acima transcrito, com o devido respeito pelo seu autor. E não deixa de ser curioso como o português fica mais rico com a inclusão de termos que ainda não fazem parte do nosso léxico nem dos nossos compêndios gramaticais.
Porém, a voluptuosidade atinge proporções extremas ao percorrer o blog da Deusa do Prazer (http://deusadoprazer.blogs.sapo.pt/), que não sei se é deusa mas sei que transmite um imenso prazer ao ler os seus textos derramados sobre um fundo da cor do ébano e envolvidos por imagens de diáfana sedução.
Se se pode sentir volúpia naquilo que se escreve, também através daquilo que se lê se sente o mesmo deleite, um orgástico gozo feito de cegos sentimentos.
Coimbra, 09 de Janeiro de 2006
Do autor
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