O Farrisca
António, de seu nome, conhecido pelo “Farrisca” ou Tonio Grilo por ter casado com a Maria da Grila.
Era minúsculo, sempre com uma enorme boina basca na cabeça desprovida de cabelos, mas detinha uma força descomunal. Era frequente encontrá-lo pelos caminhos da localidade ou da serra transportando às costas enormes cargas de feno, palha ou lenha. Não se via ninguém, apenas o vulto da carga a mexer sobre duas pernitas…
Tinha sotaque espanhol porque desde muito pequeno amargou nas Astúrias o “pão que o diabo amassou”.
Tocava trompa na Banda da terra (qué…, qué…, qué…) e também houve tempo que se dedicou à “gaita”, instrumento típico da Galiza.
Ficou célebre a canção que era mais ou menos assim:
Tu es el bien de mi alma
Tu es el ai que mal suena
Tu es el pajaro pinto
Que alegre canta por la mañana.
Adiós mi corazón…
E más no lo sé…
Bueno!
As Irmãs de Eira Velha
Eram duas: a Maria e a Rosa de Eira Velha. Velhas, velhinhas, negras, vestidas de negro, cheias de rugas e desdentadas, sempre a bulir pelos campos, atrás das cacthenas, na eira a apanhar sol.
Habitavam um velho casarão no sítio de Eira Velha e por isso eram conhecidas e identificadas.
A Rosa era solteira e muito reservada mas a Maria, penso que teria sido casada com o Zé do Baldabeleira (será Vale de Aveleira?) embora, na minha lembrança, nunca tivessem coabitado o mesmo tecto, era uma velha arisca e espertalhona.
Sempre que a encontrávamos a jeito e bem disposta pedíamos-lhe para nos contar um conto, histórias que muito nos deliciavam pelo conteúdo e pela forma brejeira de as contar.
Eram sempre histórias de reis e rainhas, príncipes e princesas que, como todas as histórias para crianças, tinham personagens bons e maus e terminavam sempre bem só que ela, em vez de terminar com um vulgar “foram felizes para sempre” rematava de uma forma parecida mas muito original –… levou-a para o castelo e fucthicou-a… – confidenciava-nos com um sorriso malicioso…
A chula é uma dança típica do folclore minhoto, muito popular, que faz mexer até um coxo(a).
Dizem os detratores e invejosos sulistas, elitistas e liberais que o facto de os dançadores elevarem os braços e retorcerem os dedos para produzirem estalidos que é para afiar os cornos... e eu retorno sempre que de facto assim é... os cornos de quem os tem porque no Minho são grandes, retorcidos e bem visíveis, ao contrário de outras regiões em que são tão pequeninos que se tornam invisíveis.
Mas cornos são sempre cornos...
O Zé Loureda
Dizia um conterrâneo e amigo meu que Cavenca teria começado a ser povoado por marginais, pessoas fugidas à justiça que ali encontravam o ambiente propício para, tranquilamente, proverem a sua subsistência e se eximirem às malhas da lei.
Não há provas de que assim fosse mas não me espantaria que esta versão colhesse alguma consistência.
Em pequeno, muito pequeno, conheci naquela (minha) aldeia um indivíduo enigmático conhecido pelo Zé Loureda.
Não sei como ali foi parar mas algo intrigante ocorria com esse indivíduo.
Morava sozinho, apenas acompanhado por um corpulento cão de raça indefinida, na casa do Canal, cedida gratuitamente pelos proprietários. Não tinha qualquer actividade e todo o dia deambulava pelos campos sem qualquer destino ou objectivo definido, sempre fazendo uso de umas socas, espécie de tamancos especiais, abertos na parte de trás, coisa que não fazia parte dos nossos hábitos e causava alguma estupefacção, dizia-se que era para rapidamente se despojar daquele peso e poder fugir...
Era afável no trato, embora extremamente cauteloso e reservado, com uma entoação de voz “assediada”, típica da região noroeste de Viseu (sei-o agora), dizia chamar-se José Fonseca e ser natural de C(x)infães do Douro (onde ficaria isso?). Loureda advinha-lhe da localidade com o mesmo nome, próximo de Arcos de Valdevez, onde teria família e residência permanente.
Em Cavenca passava a maior parte do tempo, embora se ausentasse ciclicamente, talvez para Loureda.
Nunca incomodou os habitantes da pequena localidade que o acolheu nem estes o incomodaram ou se incomodaram com a sua presença. Acabou por contrair matrimónio com uma vizinha solteirona e encalhada, a Glória do Pinto, com quem estabeleceu uma relação nem sempre muito amistosa, a avaliar pelas mazelas mal disfarçadas que esta de vez em quando apresentava.
E beneficiou da solidariedade popular sempre que as autoridades o procuravam naquele fim do mundo. Mais do que uma vez observei a presença de patrulhas da GNR cujos agentes diligenciavam localizar aquele homem enigmático mas sem resultado.
Numa ocasião falou-se que vinha uma força de Monção para o prender. Dizia-se que traziam armas sofisticadas e grilhões para prender o fugitivo, que desta vez não escapava. Então, escondi-me estrategicamente por trás de um bardo, numa propriedade que ladeava o caminho que conduzia à casa onde morava o foragido, para observar o movimento da patrulha mas a informação correu célere e a tempo do Zé “dar de frosque” ou “às de vila diogo”, como dizia meu Pai, não sei a que propósito mas que significava o mesmo. A operação abortou mais uma vez e eu fiquei a saber que nem tudo que se dizia correspondia à verdade. Vi, isso sim, dois carrancudos agentes cinzentos e cansados, de “mauser” às costas, como de costume, no cumprimento de mais uma missão que só não teve êxito por causa da fuga de informação que implicou a deslocação de um estafado mensageiro, por caminhos só conhecidos da população local, que conseguiu chegar muito antes da patrulha.
Anos mais tarde, talvez por prescrição do crime ou da pena, voltou definitivamente para Loureda…
Do autor
Velhos conhecidos
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