À Luisa "Pingente", com um beijinho... Toca a dançar!!!
O Melro, eu conheci-o: Era negro, vibrante, luzidio, madrugador, jovial; começava a soltar, d’entre o arvoredo verdadeiras risadas de cristal. E assim que o padre-cura abria a porta que dá para o passal, repicando umas finas ironias, o melro, d’entre a horta dizia-lhe: “bons dias!” E o velho padre-cura não gostava daquelas cortesias.
O cura era um velhote conservado, malicioso, alegre, prazenteiro; não tinha pombas brancas no telhado, nem rosas no canteiro; andava às lebres pelo monte, a pé, livre de reumatismos, graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos que o padre lhe dizia: cantava, assobiava alegremente, até que ultimamente o velho disse um dia.
- Nada, já não tem jeito! Este ladrão dá cabo dos trigais! Qual seria a razão porque Deus fez os melros e os pardais?
E o melro no entretanto, honesto como um santo mal vinha no oriente a madrugada clara já ele andava jovial, inquieto, comendo alegremente, honradamente, todos os parasitais da seara desde a formiga ao mais pequeno insecto. E apesar disto o rude proletário, o bom trabalhador, nunca exigiu aumento de salário.
Que grande tolo o padre confessor!
Foi para a eira o trigo; e armando uns espantalhos disse o abade consigo:
- Acabaram-se as penas e os trabalhos.
Mas logo de manhã, maldito espanto! O abade, inda na cama, ouviu do melro o costumado canto. ficou ardendo em chama; pega na caçadeira, levanta-se dum salto, e vê o melro a assobiar na eira em cima do seu velho chapéu alto!
Chegou a coisa a termo que o bom padre-cura andava enfermo, não falava nem ria, minado por tão íntimo desgosto; e o vermelho oleoso do seu rosto tornava-se amarelo dia a dia. E foi tal a paixão, a desventura, (muito embora o leitor não acredite) que o bom padre-cura perdera… o apetite!
Andando no quintal um certo dia Lendo em voz alta o Velho Testamento enxergou por acaso (que alegria! Que ditoso momento!) um ninho com seis melros escondido entre uma carvalheira. E ao vê-los exclamou enfurecido:
- A mãe comeu o fruto proibido; esse fruto era a minha sementeira: Era o pão, era o milho; transmitiu-se o pecado. E se a mãe não pagou, que pague o filho, é a doutrina da Igreja. Estou vingado!
E engaiolando os pobres passaritos Soltava exclamações:
- É uma praga. Malditos! Dão-me cabo de tudo estes ladrões! Raios os partam! Andai lá que enfim…
E deixando a gaiola pendurada continuou a ler o seu latim fungando uma pitada.
Vinha tombando a noite silenciosa; e caía por sobre a natureza uma serena paz religiosa, uma bela tristeza harmónica, viril, indefinida. A luz crepuscular infiltra-nos na alma dolorida um misticismo heróico e salutar. As árvores, de luz inda doiradas, sobre os montes longínquos, solitários, Tinham tomado as formas rendilhadas das plantas dos herbários. Dormiam virginais as coisas mansas: Os rebanhos e as flores, as aves e as crianças.
Ia subindo a escada o velho abade; a sua negra, atlética figura destacava na frouxa claridade como uma nódoa escura. E introduzindo a chave no portal murmurou entre destes:
- Tal e qual… tal e qual!... Guisados com arroz são excelentes.
Nasceu a lua. As folhas dos arbustos tinham o brilho meigo, aveludado do sorriso dos mártires, dos justos. Um eflúvio dormente e perfumado embebedava as seivas luxuriantes. Murmuravam diálogos gigantes pela amplidão etérea. São precisos silêncios virginais, disposições simpáticas, nervosas, para ouvir estas falas silenciosas dos mudos vegetais. As orvalhadas, frescas espessuras pressentiam-se quase a germinar. Desmaiavam-se as cândidas verduras nos magnetismos brancos do luar.
…
E nisto o melro foi direito ao ninho. Para o agasalhar andou buscando umas penugens doces como arminho, um feltrosito acetinado e brando. Chegou lá, e viu tudo. Partiu como uma flecha; e louco e mudo correu por todo o matagal; em vão! Mas eis que solta de repente um grito indo encontrar os filhos na prisão.
- Quem vos meteu aqui?!
O mais velhito todo tremente, murmurou então:
- Foi aquele homem negro. – Quando veio chamei, chamei… Andavas tu na horta… Ai que susto, que susto!... Ele é tão feio!... Tive-lhe tanto medo!... Abre esta porta, e esconde-nos debaixo da tua asa! Olha, já vão florindo as açucenas; vamos construir a nossa casa num bonito lugar… Ai! Quem me dera, minha mãe, ter penas para voar, voar!
E o melro alucinado clamou:
- Senhor! Senhor! É porventura crime ou é pecado que eu tenha muito amor a estes inocentes?! Ó natureza, ó Deus, como consentes que me roubem, assim os meus filhinhos, os filhos que eu criei! Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos, quanta noite perdida nem eu sei… E tudo, tudo em vão! Filhos da minha vida! Filhos do coração!!! Não bastaria a natureza inteira, não bastaria o céu para voardes, e prendem-vos assim desta maneira!... Covardes! A luz, a luz, o movimento insano, eis o aguilhão, a fé que nos abrasa… Encarcerar a asa é encarcerar o pensamento humano. A culpa tive-a eu! Quase à noitinha parti, deixei-os sós… A culpa tive-a eu, a culpa é minha, de mais ninguém!... Que atroz! E eu devia sabe-lo! Eu tinha obrigação de adivinhar… Remorso eterno! Eterno pesadelo!...
…
Falta-me a luz e o ar!... Oh, quem me dera ser abutre ou ser fera para partir o cárcere maldito!... E como a noite é límpida e formosa! Nem um ai, nem um grito… Que noite triste! Oh noite silenciosa!...
E a natureza fresca, omnipotente, sorria castamente com o sorriso alegre dos heróis. Nas sebes orvalhadas, entre folhas luzentes como espadas, cantavam rouxinóis.
Os vegetais felizes mergulhavam as sôfregas raízes à procurar na terra as seivas boas, com avidez e as raivas tenebrosas das pequeninas feras vigorosas sugando à noite os peitos das leoas. A lua triste, a lua merencórea, Desdémona marmórea, rolava pelo azul da imensidade, imersa numa luz serena e fria, pura como verdade. E entre a luz do luar e os sons e as flores, na atonia cruel das grandes dores, o melro solitário jazia inerte, exânime, sereno, bem como outrora a mãe do Nazareno na noite do Calvário!...
Segundo o seu costume habitual, o padre-cura foi para o quintal, levando a bíblia e sobraçando a enxada. Antes de dizer missa, o velho abade inevitavelmente tratava da hortaliça e rezava a Deus Padre Omnipotente vários trechos latinos,salvando desta forma juntamente as ervilhas, as almas e os pepinos. E já longe ia bradando:
- Olé! Dormiram bem?... Estimo… Eu lhes darei o mimo, canalha vil, grandíssima ralé! Então vocês, seus almas do diabo, julgavam que isto que era só dar cabo, da horta e do pomar, e bico alegre e estômago contente, e o camelo do cura que se aguente, que engrole o seu latim e vá bugiar!... Grandes larápios!... Era o que faltava. Vocês irem ao milho e a mim mandar-me à fava! Pois muito bem. Agora que vos pilho eu vos ensinarei seus safardanas! Vocês são mariolões, são ratazanas, tem bico, é certo, mas não tem tonsura… E nas manhas um melro nunca chega às manhas dum padre-cura. O melhor vinho que encontrar na adega é para hoje, olé!... Que bambochata! Que petisqueira! Melros com chouriço!... E então a Fortunata que tem um dedo e um jeito para isso!... Hei-de comer-vos todos, um a um, lambendo os beiços, com tal gana enfim que comendo-vos todos, mesmo assim eu fico ainda quase que em jejum! E depois de vos ter dentro da pança, depois de vos jantar, vocês verão como o velhote dança, como ele é melro e sabe assobiar!...
Mas nisto o padre-cura titubeante quase desfalecendo, atónito de horror, parou doente deste drama de horror: O melro ao ver aproximar o abade, despertou da atonia, lançando-se furioso contra agrade do cárcere. Torcia para os partir os ferros da prisão, crispando as unhas convulsivamente com a fúria dum leão. Batalha inútil, desespero ardente! Quebrou as garras, depenou as asas e balbuciando, exangue, partiu num voo arrebatado e louco.
Trazendo dentro em pouco preso no bico um ramo de veneno, e belo e grande e trágico e sereno disse:
-Meus filhos, a existência é boa só quando é livre. A liberdade é a lei. Prende-se a asa, mas a alma voa… Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei!
E mais sublime do que Cristo quando morreu na cruz, maior do que Catão, matou os quatro filhos, trespassando quatro vezes o próprio coração! Soltou, fitando o abade, uma pungente gargalhada de lágrimas, de dor, e partiu pelo espaço heroicamente, indo cair, já morto, de repente num carcavão de silveiras em flor.
E o velho abade, lívido de espanto, exclamou afinal:
- Tudo que existe é imaculado e é santo! Há em toda a miséria o mesmo pranto, e em todo o coração há um grito igual. Deus semeou de almas o universo todo. Tudo o que vive ri e canta e chora… tudo foi feito com o mesmo lodo, purificado com a mesma aurora. Ó mistério sagrado da existência, só hoje te adivinho, ao ver que a alma tem a mesma essência pela dor, pelo amor, pela inocência, quer guarde um berço, quer proteja um ninho! Só hoje sei que em toda a criatura, desde a mais bela até à mais impura, ou numa pomba, ou numa fera brava Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!...
…
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava…
…
E, arremessando a bíblia, o velho abade murmurou:
- Há mais fé e há mais verdade há mais Deus com certeza nos cardos secos dum rochedo nu que nessa bíblia antiga… Ó natureza, a única bíblia verdadeira és tu!...
Guerra Junqueiro
Do autor
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