O Nelo da Carma
O Nelo era o barbeiro da terra.
Hipocondríaco e um pouco lunático, discorria sobre os mais variados temas enquanto habilmente esgrimia a tesoura em torno das orelhas dos “clientes”.
A sua habitação, uma parte de uma construção antiga com uma área total de uns quarenta metros quadrados, era ponto de encontro privilegiado só para homens, quer fosse para aguardar a vez para um “caldinho” no cabelo, quer para actualizar as novidades, quer para, simplesmente, fazer um intervalo nas lides diárias.
A porta estava constantemente aberta e, no Inverno, a lareira ficava acesa durante vinte e quatro horas por dia. Ao lado da lareira, uma velha cafeteira tinha sempre pronta a ser servida uma água quente de cor acastanhada, fruto da mistura de café e outros aditivos similares que lhe tinha adicionado.
Além de barbeiro, assobiava como um rouxinol e era um músico exímio, mesmo sem saber ler uma pauta.
Mantinha a família num rigoroso regime de austeridade em tempo de pobreza generalizada e impunha a “disciplina” no seio familiar sob a ameaça do “chicote”, isto é, do cinto das calças, uma forte e encardida correia de couro.
Os filhos cedo abandonaram o lar para terem uma vida melhor em França, sem nunca renegarem o lar, e a mulher, não sei se vive ou não, que nunca vira a vida a sorrir-lhe, também foi para terras gaulesas após enviuvar e, nessa fase, talvez se apercebesse da existência de vida melhor do que sempre tivera…
Era comum, em miúdos, distrairmo-nos na brincadeira em vez de efectuar os trabalhos que explicita ou implicitamente nos competiam. Então, muitas vezes, ouvia-se um sibilante silvo que penetrava nos nossos tímpanos. Não era preciso dizer nada porque o código era bem conhecido e nessas ocasiões havia sempre um elemento do grupo que abandonava célere a brincadeira. Era precisamente o filho do Nelo. Muitas vezes o vimos a fugir à fúria do cinto do pai, chegando a perseguição a prolongar-se por vários quilómetros. O rapaz acabava por dormir em casa de amigos ou nalgum palheiro e só regressava a casa quando a tempestade cedesse lugar à bonança.
Mas o Nelo falava sempre com paixão dos seus tempos da tropa. Recordava o nome do capitão, do tenente, do alferes, do sargento, do cabo, dos camaradas. Lembrava cada episódio do tempo em que envergara a farda e em que a tropa se revestia de uma importância extrema para os jovens do interior por lhes abrir as “portas” do mundo (para muitos, a tropa era a forma de, pela primeira vez, terem acesso a três refeições diárias e um banho digno desse nome…).
Recorri aos seus serviços, como barbeiro, nas vésperas da minha ida para a tropa.
Disse-lhe qual era a finalidade da “tosquia” e ele, conhecedor das exigências da missão, disse-me que ficasse tranquilo que cabelo cortado por ele não necessitava de ser sujeito ao ritual da incorporação, isto é, a tradicional visita à barbearia regimental.
Foi uma “carecada” de meter medo!
Quando me apresentei no Quartel para assentar praça, um cabo que estava na “comissão” de recepção disse-me com ar de gozo: Ainda não chegou o 25 de Abril à tua terra? A uma pergunta não se responde com outra pergunta mas um pouco ferido no meu orgulho não me contive e retorqui: Porquê? — É que já não se usam cortes de cabelo desses…
Não culpei o Nelo pelo “vexame” de que fui alvo mas jurei vingar-me… Enquanto estive na tropa nunca mais fui ao barbeiro!
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